Gustave Flaubert: Madame Bovary

“Madame Bovary sou eu”, diz Flaubert na orelha de uma edição brasileira de seu maior romance. Curiosamente, tal afirmação remete a outro clássico do romance francês, No Caminho de Swann, de Marcel Proust. Proust empresta seu nome diretamente ao protagonista deste que é um dos maiores libelos do romantismo, estilo contemporâneo do realismo que impregna Madame Bovary.

O destino de Marcel é semelhante ao de Ema, mas há fortes diferenciais nos caminhos distintos pelos quais eles enveredam. Marcel é um boa-vida, e também é do sexo masculino, malgrado muitos queiram denegri-lo pelos costumes por demais delicados e seus choramingos junto à saia da mãe.

São duas diferenças, e uma delas é que realmente determina que o destino de Ema caminhe por trilhas distintas daquelas que Marcel palmilha em direção ao final de auto-extermínio. Neste ponto, é importante ressaltar que Ema vive dentro de um universo do realismo, embora suas motivações muitas vezes se devam ao consumo de novelas exacerbadamente românticas. Marcel, por seu turno, rivaliza com o germânico Werther na disputa pelo posto de ícone romântico indiscutível.

O que estigmatiza Ema, antes do gênero, é ter nascido filha de um sitiante pouco abastado. Sua sorte não melhora quando seu salvador surge na figura de Carlos, um completo banana, um médico conformado e indiferente a qualquer coisa que escape à rotineira sobrevivência. Tamanha inépcia em compreender o mundo a seu redor é o que torna verossímil o fato de Carlos não perceber a vistosa galhada que adorna sua cabeça.

Ema é um marco, embora não se possa dizer que seja uma feminista. Flaubert é feminista, mas Ema, apesar da declaração de seu criador no começo deste texto, não é. Ema é um marco porque finalmente se escreve um livro a partir da ótica da mulher. Rodolfo, aquele grande babaca, foi o protagonista de tantos outros romances antes deste, e poderia se passar por uma pessoa sensível que, oh, se apaixona por uma mulher casada, vive com ela um tórrido romance, e dela desiste quando a sociedade, a sociedade cruel e hipócrita, o impede de prosseguir.

É notável em Madame Bovary o pragmatismo de cada um dos personagens. Ainda que atingidos pelas paixões, eles podem retomar um trilho esquemático, esvaziando-se da vida a que aspiravam, mergulhando em panegíricos como os rituais religiosos.

Ema não quer ser um homem, a princípio. Ela quer uma nova chance, quer que a roda seja girada novamente, e que ela nasça entre bailes e pompas, e não numa vila simplória. Digamos que ela tenha esta chance, e viva na alta sociedade. Bem, aí sim ela poderia vir a ser uma feminista, pois uma mulher de alta sociedade também era esmagada pelo machismo reinante.

Ema especialmente não quer ser Carlos. Seu marido a exaspera, é um tolo tão medíocre que soçobra diante do único sopro de ambição que surge em seu peito. Sua ousadia resulta em um pobre homem, antes aleijado, agora decepado e portador de uma perna de pau. O desastre de Carlos o atormenta, persegue-o involuntariamente pelas ruas estreitas da cidadezinha onde lhe foi possível viver.

Flaubert é um clássico, mas seu romance sofre das mazelas de ser um pioneiro em seu estilo. Certas passagens são apressadas, não parecem buriladas como o seriam em um volume de Vitor Hugo, por exemplo. Há expedientes um tanto óbvios, como nos momentos finais, em que Ema agoniza em contraponto com as frivolidades da comunidade, que se ausenta do drama que ela vive. Os adultérios de Ema, percebe-se, permanecem discretos simplesmente porque a população do lugarzinho não se importa. Ela morre, e o seu mundo permanece surdo aos seus apelos.

A morte de Ema é tão patética quanto a de Marcel; todavia, ela carrega para o túmulo um testemunho de uma era de injustiças. O recado de Marcel, perto disto, é frívolo, fala de exacerbações e exaltações poéticas, envoltas em doce auto-indulgência. Não se trata de julgar ou escolher qual é mais relevante; Marcel e Ema são facetas de um mesmo fim de século.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
Esse post foi publicado em Literatura e marcado , , , , , . Guardar link permanente.

2 respostas para Gustave Flaubert: Madame Bovary

  1. gilvas disse:

    valeu! eu vi que há uma penca de adaptações de cinema e de tevê, observei isto enquanto buscava a imagem para o texto, mas não vi nenhuma. é um livro de fácil adaptação, é só não ferrar tudo no figurino, e boa. de que ano é esta adaptação? seria este: http://www.imdb.com/title/tt0212318/

  2. Carlos disse:

    Gilvan, seus texto são inspiradores. Você conhece a adaptação de Madame Bovary produzido pelo canal britânico BBC? A adaptação é fiel ao original e a fotografia fantástica. Indico! Abs,

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.