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Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, deslumbravam-no cada vez. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. Babilônia, Londres e Nova Iorque sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, configurava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam. (…) Ao Este, num trecho não demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nesta direção voltava o rosto para dormir. Também costumava imaginar-se no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente.
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Trecho de “Funes, o Memorioso”
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Naquele outono de 1922, refugiara-me na quinta do Gen. Berkeley. Este (a quem nunca havia visto) desempenhava não sei que cargo administrativo em Bengala; o edifício tinha menos de um século, mas era deteriorado e opaco e possuía muitos corredores suspeitos e antecâmaras vazias. O museu e a enorme biblioteca usurpavam o andar térreo: livros controversos e incompatíveis que de algum modo são a história do século XIX; cimitarras de Nishapur, em cujos suspensos arcos de círculo pareciam perdurar o vento e a violência da batalha.”
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Trecho de “A Forma da Espada”
hoje mesmo tive certeza desse trecho:
“Dormir é distrair-se do mundo”
uau!