Odiada

O ano era 1987, mas eu não estava lá. A banda inglesa The Cure incorria num clichê muito comum entre bandas que alcançam o estrelato nas paradas populares, algo que muitos enxergam como o rito de passagem que leva a uma carreira repentinamente séria e relevante, um dos platôs mais altos na celebração do exagero enquanto forma de arte e também um anacronismo dado que hoje já transcendemos a era da música digital, adentrando a audição sob demanda pelo modelo “ouça quanto puder”… Bom, eu falo de discos duplos, e o disco em questão chama-se Kiss Me Kiss Me Kiss Me.

Eu consegui uma cópia desse disco em vinil num sebo. Foi caro, e parte do encarte estava rasgada. Havia riscos em uma ou outra faixa, mas já não posso dizer quais eram os originais e quais foram causados pela audição continuada. Eu gosto de pensar que Torture foi a faixa que primeiro me encantou, mas provavelmente foi How Beautiful You Are. Ela é a segunda do lado B do primeiro disco. A abertura desse lado é feita por Why Can’t I Be You, um pastiche divertido de Bowie oitentista, uma canção acelerada com uma declaração direta de amor. Vem a calhar que How Beautiful You Are seja uma antítese, cuja letra se inicia por do you want to know why I hate, well I’ll try to explain. Eu lia muitos romances do século XIX na época em que ouvia esse disco, então este formato de carta definindo uma narrativa confessional intensa me atraiu. A levada é simples mas encantadora, apesar dos teclados um pouco exagerados. A linha de baixo eu não devo ter absorvido na época, mas aprendi a tocar faz uns dias e hoje sei apreciá-la.

Robert Smith costuma contar algumas histórias. Menos do que contemporâneos como Lloyd Cole, mas não se pode confiar que tudo que Smith cante venha de sua vida real. Ele mesmo declarou que “estaria morto ou preso” se tivesse sido o protagonista de tudo o que cantou em suas canções. Neste caso, Smith se inspirou em um poema de Charles Baudelaire, Les Yeux des Pauvres, que traduzo livremente como Os Olhos dos Pobres. A história é a mesma: um homem apaixonado está com sua amada, quando se aproximam um pobre velho e duas crianças, que a admiram intensamente, sendo rejeitados pela mulher. Eu vim a descobrir a relação entre a canção de Smith e o poema de Baudelaire lendo Ensaios sobre o Amor, do Alain de Botton, que usa a obra de Baudelaire para exemplificar a decepção do recém-apaixonado.

Essas conexões foram surgindo para mim ao longo de todos esses quase trinta anos. Como é de se imaginar, muitas mudanças se operaram em mim, e sou um adulto bem distinto do arremedo de gótico que eu tentava ser no começo dos anos noventa. Aliás, qualquer gótico da época teria de passar pelo ridículo da comparação com o personagem de Eri Johnson numa novela das oito da Gloria Perez. Tempos difíceis, mas eu não reclamava: os românticos novecentistas que eu adorava na época costumavam se casar com a tuberculose. O jovem de preto que eu era adorava essa visão pedestáltica da mulher linda cuja beleza transbordava e fazia todos felizes pelo simples fato dela existir. Claro que ela não poderia ser perfeita; neste caso ela era uma insensível que não podia satisfazer ao humilde desejo de adoração de um velho e duas crianças. Como um romântico que segue sua cartilha à risca, eu só poderia me identificar com o elevado protagonista da cena, um poeta sensível e de boas intenções. Como poderia ser diferente? Eu era branco, jovem, da classe média, com quem mais eu poderia me identificar?

Algumas décadas de lento desenvolvimento de empatia, e eu pude dar uma pequena olhada no ponto de vista da moça da cena. Ela usa saias enormes, em várias camadas. Caminha ao lado de um jovem afetado de boa família, com o qual foi se encontrar como preâmbulo para algo que poderia eventualmente levar a um casamento. No século XIX não havia muitos modos para uma mulher ter uma vida razoável a menos que tivesse renda de uma boa família e, mesmo que viesse de uma boa família, um bom casamento poderia ajudar muito. O rapaz, entretanto, é excêntrico, fala de altos ideais e devaneia em poemas de gosto duvidoso. Fala de absinto e não diz coisa com coisa. Não parece alguém em quem se possa confiar, alguém que se diz um boêmio bem antes dos antibióticos terem sido inventados. A coisa, entretanto, pode até não ir tão mal, pois o mancebo se declara a cada instante, fala bonito as suas palavras emprestadas, há esperança. Ou havia, até o momento em que chove e eles vão se abrigar em frente a um prédio onde há alguns pobres mendigos, que a olham de um jeito muito estranho, falam coisas que ela não quer entender. Ela pede que eles saiam dali, o seu pretendente surta e a escorraça. Alguns dias depois ela recebe uma carta que propõe poética mas que, ela desconfia, talvez seja apenas pomposa. Ela, ainda sem entender direito, passa a avaliar outras opções, se casa em alguns meses e leva uma vida tranquila e pacata até seus quase sessenta anos.

Esta mudança de ponto de vista não tira o mérito do poema de Baudelaire ou da canção de Smith. Baudelaire capturou dois temas caros ao romantismo, e Smith o reciclou dentro de uma estética de música popular que glorificava os românticos do século XIX. São linhas estéticas coerentes e causam impacto como a arte, em diferentes lugares de fala, deveria causar. Ainda assim, seria bem legal ouvir, de uma compositora, uma canção escrita do ponto de vista daquela linda mulher tão admirada e tão odiada.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
Esse post foi publicado em Uncategorized e marcado , . Guardar link permanente.

4 respostas para Odiada

  1. gilvas disse:

    muchas gracias. foi demanda reprimida, não deve acontecer tão cedo de novo. 😉

  2. Cristiano Bühler disse:

    Legal Gilvas!! Preciso ouvir esses discos…

    • gilvas disse:

      Hoje está tudo tão disponível em streaming que me pego deixando de ouvir tanta coisa simplesmente porque não dá tempo de ouvir tudo o que vem sendo feito de bom. 😉

  3. Mario Tessari disse:

    Comemoramos a volta das postagens… em Gilvas no Natal.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.