Margaret Atwood: O Conto da Aia

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Eu não pretendo escrever uma resenha deste romance de Margaret Atwood. Há dezenas de resenhas nos mais diversos formatos. Eu não li as resenhas, mas não vejo razões para acreditar que eu poderia agregar algo quando tantos já escreveram sobre o cerne da obra. Manter-me-ei limitado a alguns aspectos periféricos, que, presumo, não tenham sido explorados. Se foram, bem, este parágrafo de introdução é inútil e você não perdeu mais do que alguns segundos lendo-o.

O Conto da Aia entra fácil com 1984 e Brave New World no pódio das distopias literárias mais relevantes do século XX. Talvez seja um pouco injusto por Atwood ter escrito na década de oitenta e seus colegas bem antes, mas devemos considerar disparidades sociais entre gêneros, para começar, e perceber que contos de precaução podem ser escritos a qualquer momento. O obscurantismo vive atacando a democracia e as liberdades individuais, e vivemos no Brasil justamente o que poderia bem ser a antessala de uma teocracia absolutista.

Refinando ainda mais a comparação, eu diria que O Conto da Aia é superior a 1984, e fica lado a lado com Brave New World. Em comum estes livros têm a faculdade de apresentar uma sociedade distópica onde a opressão tem vantagens ocasionais para os oprimidos, além de um discurso poderoso para se justificar. Orwell falha neste quesito. Atwood vai um pouco mais além, em um golpe de mestre. Ela avalia sua narrativa do ponto de vista de historiadores do futuro. Além de criar uma aura de legitimidade em torno de algo que seria apenas ficção, ela relativiza o conteúdo do volume tanto pelo distanciamento histórico quanto pela visão muito pessoal de Offred, esta criatura que está fugindo e que grava seus relatos numa atmosfera de terror premente. Atwood entrega um texto repleto de desespero, que desemboca em um destino incerto, o que já demonstra sua habilidade em tangibilizar narrativas. Não bastasse isso, ela demonstra que mesmo o mais opressor dos regimes é, no final das contas, temporário.

Sorrio para esta escritora magnífica, capaz de sutilmente instilar o embrião da revolta em meio a suas palavras. A era Bolsonaro passará junto com toda a ignorância que a sustenta e que dela emana. A propaganda de robôs virtuais será um dia rechaçada pelas pessoas que hoje são suas escravas. A mentira não durará para sempre, a família de machos brancos que envergonha nosso país passará e mesmo suas maiores idiotices virarão notas de rodapé de uma história bem maior do que os baluartes do conservadorismo e seus asseclas, maior do que qualquer um de nós que estamos vivendo esses tempos bicudos. Como Atwood pontua, mesmo as piores ditaduras conseguem evitar que as pessoas tenham de defecar eventualmente ou que a primavera enfim chegue. Ou vá.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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