Graciliano Ramos: Viagem

Graciliano Ramos era um jornalista. Escritor também. Não sei exatamente em que ordem. Entretanto, não faz tanta diferença. Jornalistas tendem a invadir o espaço da literatura com uma técnica bem resolvida e não raro desprovida de graça. É quase um ponto conceitual: jornalistas podem até escrever artigos com pinceladas vigorosas de boa prosa, mas há de surgir um texto impressionante de um verdadeiro jornalista para me convencer de que possam ser escritores estes operários das redações.

Ramos não escapa do clichê, e talvez seja por má amostragem aqui na minha estante. Meu pai emprestou-me um volume de Viagens, relato do jornalista brasileiro de suas andanças pela União Soviética na década de 50 do século XX, e este assunto não é exatamente o melhor que poderia se apresentar para uma primeira leitura minha.

A URSS era uma potência real naquele início de guerra fria. Após a campanha na segunda guerra mundial, passados alguns anos e ainda notável a ferida deixada pela mortandade que significou aquele conflito para o povo russo. Morreu quase toda uma geração nos campos de batalha; a União Soviética não tinha poder bélico na década de quarenta, e seus jovens foram bucha de canhão, amontoando-se diante dos tanques da blitzkrieg de Rommel. Ramos chega ao núcleo do comunismo mundial neste panorama, e imbuído de uma paixão pelo que se apresentava, na época, como uma alternativa ao capitalismo monstruoso que se desenhava.

O texto começa com a promessa de que não veremos um desfile imparcial de elogios ao comunismo e seu país-sede, mas Ramos segura suas convicções de forma apenas razoável. No mais das vezes, ele deixa escapar seu idealismo bem construído. Isto marca as páginas com um ranço datado, e não facilita a descida do conteúdo pela minha goela abaixo.

A prosa de Ramos é seca, como previamente alardeada em sua biografia pelos sítios internáuticos afora. O mais adequado, confesso, seria iniciar minha leitura de Ramos pelo seu ápice, Vidas Secas, e não por um relato de viagem escrito em seus anos de crepúsculo. Aqui, custa sair uma gota de sumo, e quando sai, é algo de um Cabernet Sauvignon largado num canto da adega por eras.

Bom momento, por sinal, para falar sobre uma característica marcante da escrita de Ramos: não consigo entender exatamente o que acontece, pode ser que ele seja realmente um velho resmungão, pois isto é o que parece. A coisa fica mais saliente porque ele emite seus juízos mesmo estando sob o encanto da sereia stalinista. O mais interessante é que ele nem estava velho o suficiente para ser tão mala, apesar de ter vindo a falecer logo depois.

Outro ponto interessante é a relação com a esposa. Existem algumas menções à mulher em partes do livro, mas ela é mostrada de forma semelhante à babá dos Muppet Babies: alguém genérico, existente apenas em momentos restritos, pronta a dar respostas. Na falta de palavra melhor, penso que Ramos é um machista, pura e simplesmente, pois sua mulher, a julgar pelos momentos descritos, só faz besteiras. Some a isso a admiração pela beleza de quase toda georgiana ou russa que atravessou seu olhar, e eu vejo o chauvinismo transbordando do ideário do jornalista.

As anotações que Ramos tomou durante a viagem receberam um atraso de tempo na migração do ocorrido até a caneta deitar efetivamente sobre o papel. Outro lapso de tempo parece ter se passado entre as anotações e a máquina de escrever, e ambos os fatos causam desconfortos ao leitor e ao escritor, como ele mesmo fala neste livro.

Nesta altura do campeonato, pode aparentar que eu não recomendaria este livro; tal conclusão seria equivocada, declaro. Ainda que fosse para perceber o espírito de uma era, e as sementes do que viria a desembocar nas ditaduras cruéis da década seguinte em diante, tanto na Europa quanto na América do Sul e Central. Os esforços da União Soviética em divulgar seus êxitos, reais ou imaginários, coadunam com aqueles que os Estados Unidos faziam, na época, para transformar os russos nos sangüinários comedores de criancinhas que populavam a cultura popular dos anos oitenta.

Uma amostra foi retirada da página 176:

(…) A observação causou-me um baque interior: francamente, achava-me longe de esperar recebê-la. A coisa apontada como sinal de fraqueza do Governo Soviético mudava-se, no juízo da minha amiga, em prova de fortaleza. No espanto, não me ocorreu informar-me de qualquer coisa: a frase concisa abria-me com largueza uma porta. Os homens que ali se acumulavam podiam, se quisessem, viver em condições menos precárias. Imaginei pequenos artesãos, vendedores ambulantes, inimigos da oficina, incapazes de associar-se, almas do outro mundo, esquivas, lúgubres, saudosas de um passado morto depressa. Talvez entre eles se arrastassem alguns ladrões. (…)

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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4 respostas para Graciliano Ramos: Viagem

  1. arprin disse:

    Interessante. Bom ter a perspectiva de alguém que não gostou do texto, e isso exposto em boa prosa.

  2. uxe maria disse:

    isso nao serviu mt u.u

  3. brenda disse:

    a beatriz vvc esteve aq ne hum

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