Adorado Esteban

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Naquele início cinzento de uma mau humorada noite paulistana, eu estava sentado do lado de fora do Citibank Hall. Eu conversava com meu amigo Renato Turnes sobre amores, ilusões, amigos, filmes, aviões, o dia, a chuva, as roupas dos outros fãs que se enfileiravam para o concerto que ocorreria em pouco mais de duas horas.

Naquele momento, eu ainda amava o Morrissey, apenas um pouco menos do que havia amado antes.

O cantor inglês atravessou comigo tardes vazias e, algumas vezes, alcoólicas. Ali por 1995 eu senti que estávamos nos afastando devagar após o ápice de uma relação em Vauxhall & I. A produção seguinte tornava-se pálida aos meus olhos enquanto novas safras inglesas surgiam no mesmo rastro artístico dele. As confusões e os tribunais de repente apareciam mais do que a sua música, do que suas letras espirituosas e mordazes. Parecia que eu nunca voltaria aos encantos da sua atribulada e irregular fase inicial; ainda que a música não fosse um consenso popular, ela dizia tudo que eu precisava ouvir naquela época.

Tentei chegar perto dele nos novos lançamentos. Morrissey de repente era amado na América, vivia em Los Angeles, se mudava para Paris, emulava um gangster na capa de um disco, se fazia acompanhar de um bebê em outra, mas, mas… mas pareciam a mim emulações, truques.

As turbulências ameaçavam fechar-se sobre ele. Cancelamentos, doenças, uma carreira na literatura, autobiografia, o que estava acontecendo com nosso tímido mancuniano? Preferi me manter à parte, havia tanto para ouvir de outros artistas, inclusive muito influenciados por Morrissey. Deixei de comer carne, talvez influenciado por ele, nossos caminhos, enfim, talvez tivessem sido sempre os mesmos.

Então ele lança um disco polêmico. Começa da capa, uma fotografia desleixada de Morrissey com um cachorro, como se estivesse a debater com o animal. Seria um anúncio explícito de que nosso herói teria se tornado um tio breaco, destinado a nos causar constrangimento? Uma primeira audição do disco complica as coisas: a sequência das faixas não é a mais feliz, e nem mesmo a escolha. Havia canções que deveriam ter ido para o disco bônus, e algumas que nunca deveriam ter estado lá. O disco acabou esquecido. E assim ficaria, como outros dele, se não fosse sua poderosa ascensão a partir dos hospitais a que foi levado depois de cancelar várias datas e provocar dúvidas consistentes sobre sua sobrevivência nos palcos, ou mesmo na vida cotidiana.

Uma nova vinda ao Brasil foi anunciada, e tentei novamente ouvir o último disco. O homem estava voltando, e sua coleção de novas canções, como não pude notar antes, dizia muito sobre a pessoa em que se transformou aquele adolescente que ouvia as chorosas canções dos Smiths e da fase inicial da carreira solo dele. O truque é escutar primeiro o disco de bônus, e deixar rodar até começar o disco principal. Faz muito mais sentido, permite uma apreciação bem mais apropriada.

Apesar do belo registro, amaldiçoado por uma horda de detratores de limitada percepção, eu me perguntava se ele ainda conseguiria ser o Morrissey em cima de um palco. Estaria sua voz em forma? Jornais citavam alguma limitação em suas famosas chicotadas com o cabo do microfone, bando de vis abutres que preferem selecionar apenas fofocas de qualquer fala ou fato. Será que Morrissey deveria seguir seu conselho aos dinossauros do rock, e apenas deixar o palco? Não, ele declarou em jornais e revistas e programas de televisão e mesmo no palco daquele dia, ele declarou que não sabe fazer mais nada além disso. Ele não vai desistir.

Apostei setecentos contos nele. Mais uns tantos dinheiros que se foram em passagens e outros acessórios de uma viagem a São Paulo. Eu li as resenhas do show anterior no teatro Renault. O setlist me deixou algo incomodado. Muitas músicas dos discos que eu não havia ouvido tanto assim. Fiz minha lição de casa, na medida do pouco tempo que havia. Eu estava ali diante dos famosos clipes de que Morrissey tanto se orgulha, vídeos de grupos de moças cantantes dos anos sessenta, de Ike e Tina Turner, do cancioneiro francês de nariz orgulhoso, da soul music, lá estava a gênese do que viria a ser Morrissey. As dúvidas me corroíam mesmo depois de ter passado feliz juntos ao food truck obrigatoriamente vegetariano e ao povo do PETA que aproveitava o apoio de Morrissey à causa animal.

A moça apareceu no vídeo esbravejando, falando alto, e eu já tinha ouvido falar da cena. ai-meu-deus-e-agora. A cortina sobe, e uma versão abafada de Suedehead enche timidamente o ambiente. É ele. E sua gangue. Provavelmente sua melhor gangue, os melhores músicos que já o acompanharam em sua carreira solo. Da formação antiga, apenas Boz Boorer, algo preguiçoso em sua postura de John Wayne, o homem de confiança de Morrissey. O som se ajeita em seguida, torna-se consistente, permitindo que se perceba as qualidades que descrevi no começo deste parágrafo.

É com Speedway que efetivamente entro no clima. Adoro esta canção, e ela diz tanto sobre Morrissey que não poderia ser deixada de fora em nenhum set dele. Quando a banda para subitamente, como no álbum, o pausa dura um pouco demais, me enche de apreensão, que percebo desnecessária quando as luzes retornam, e o multi-instrumentista começa a cantar os últimos versos de Speedway em espanhol. Morrissey está no fundo do palco com um pandeiro, Boz comanda as baquetas, quase todos trocam de posição, numa divertida brincadeira. Morrissey está sério como nunca, mas parece que finalmente aprendeu a brincar.

Meu receio, de ter minha carteirinha do fã-clube apreendida, mostra-se infundado. Aos acordes de Ganglord, eu sabia cantar a canção inteira, mesmo sem ter ouvido tantas vezes. Os vídeos na tela são contundentes. Violência policial brota, jorra sobre a plateia. Espancamentos, surras, torturas, safanões, execuções de cães. Policiais homens batem em negros, mulheres e animais, e também em quem quer que tente defender as minorias. Choro de raiva por este mundo escroto de Datenas e outros monstros.

No silêncio após Ganglord, me perguntei se eu teria a alegria de ouvir algumas canções tão queridas que vinham sendo deixadas de fora dos setlists. Morrissey, não sei o que dizer, mas ele sabia exatamente o que eu queria e precisava ouvir naquela noite. Ele toca Istanbul, linda. Não é o bastante de surpresa. Ele tira Yes, I’m Blind, que consegue detonar o que sobrava de minha voz. Como diabos ele sabia que eu precisava ouvir Jack The Ripper, e será que ele sabia que eu me desmancharia em agradecimentos por haver tocado a maravilha esquecida que é One Of Our Own?

As viúvas dos Smiths sentem-se traídas, sempre esperam que Morrissey vá se render a pressões de saudosistas. Ele declarou em várias entrevistas que não é um ex-Smith e jura de pés juntos que não reformaria a banda. Espero que ele se mantenha firme. Apesar disso, ele toca Smiths. Por que não tocaria? Ele toca Meat Is Murder. A projeção crua e explícita de cenas de matadouros provoca a saída de algumas pessoas e a tolerância resmungona de tantas outras que cismam em fingir que Morrissey é apenas um pop star ultrapassado e não um ativista que não poupa esforços ou reputação quando se trata de defender os animais. A raiva me faz chorar pela segunda vez, ainda que eu não faça mais parte da carnificina. A versão é poderosa. Numa saberei como eram os Smiths ao vivo; seus registros em discos soam desprovidos do encanto de que ouvi falar em relatos da época. Por mais que eu admire Johnny Marr, havia algo faltando nas versões ao vivo. A banda atual de Morrissey mostra a que veio, e entrega toda a violência rancorosa que o tema demanda. Ela detonará ainda versões vitaminadas de Queen is Dead e What She Said para gáudio das viúvas, que voltariam a seus celulares até que começasse uma versão qualquer de Everyday is Like Sunday, algo eclipsada pela catarse da anterior, Meat is Murder. Uma pessoa saiu carregada durante o começo de Everyday, por sinal.

Eu caminho para casa com meu amigo, ao lado de tantos estranhos. Eu não estou sozinho e minha fé no amor é ainda a de um devoto. De Morrissey, claro.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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