Nunca Mais

nevermore

O encerramento de um relacionamento tem seus subprodutos, seus resquícios, suas reminiscências. Um deles é aquela sensação recorrente, nos primeiros tempos do desenlace, de que poderia ter sido feito mais, conhecido mais, brincado mais. Há poemas sobre anciães que se lançam a essas reflexões sobre o tardio, muitos poemas de muitos anciães, tantas reflexões que apenas mostram que as trilhas a serem tomadas, durante a vida ou durante um relacionamento, são poucas, estreitas. A vida poderia ser vista como um relacionamento com a própria consciência. Num universo cuja imensidão nos escapa, nos aferramos à vida, tão rara e tão curta, como esta fosse a regra, e não a exceção.

Os noticiários estampam suas manchetes e cada vez mais o obituário se enche de nomes conhecidos, um David Bowie, um Dick Dale acolá. São pessoas que viveram vidas longas, dentro dos respectivos padrões médios das populações de onde provêm. O que chega a ser uma surpresa considerando os exageros hedonistas que parecem caracterizar a classe artística no imaginário popular. Apesar de tais ocorrências beirarem o banal, elas geram comoção de dimensões avantajadas. Há uma primeira onda de carpideiras composta daqueles que choram simplesmente porque se trata de alguém famoso. Estes chorariam por qualquer um, fosse o Cid Moreira ou o Renato Russo a partir para a carreira subsolo. É o mesmo tipo de pessoa que reconhece um famoso no aeroporto e chega para pedir um autógrafo. “Você é aquele cara, né? Como? Richard Dawkins? Isso, isso. Tu tens aquele programa de evangelização na BBC, certo?”. Que os jornais me livrem de ser famoso.

Falemos do segundo tipo, o fã, o cara que conhece as músicas, topou até ler os romances de qualidade duvidosa só porque eles verteram da mesma pena que gerou as canções que acalentaram aquelas tardes tristes de sábado em que ninguém parecia me entender. O fã resiste bravamente aos avanços cruéis que a idade faz sobre o ídolo, finge não perceber as declarações idiotas do ídolo, mas, principalmente, deixa escapar o fato de que o ídolo, tantas vezes, não produz nada que preste há décadas. Literais, porque não sou muito chegado a hipérboles.

Este é o ponto em que divido obra e artista. O artista produz até certo momento de sua vida. Muitos deixam cedo de fazer qualquer coisa que preste, e se prestam eles mesmos a bucha de canhão em programas de auditório e festas constrangedoras. Alguns envelhecem bem, são bastiões da cultura popular que conseguem se reinventar e voltar a comover as antigas e, quiçá, novas plateias; são raros, embora existam. Entretanto, tirando a fatalidade da morte em tenra idade e plena produção, o vigor da obra fenece bem antes que cesse a respiração do seu criador. Desta forma, observo com curiosidade que chore tanto a morte de pessoas que já são estranhas à sua própria obra. Vejo criaturas patéticas, como Lobão, se prestarem, agora velhos, a fazer cover de suas versões jovens, cantando as mesmas canções com a dedicação profissional de quem não sabe fazer outra coisa.

O fã da obra percebe quando esta mostra sinais de desgaste. Chora sobre a obra que deixa ser vertida, e não sobre o artífice, este estranho que falece depois de vários anos cinzentos.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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