William Faulkner: A Mansão

Ao fechar a trilogia da família Snopes com A Mansão, William Faulkner fecha um longo ciclo em sua própria obra. O período de tempo abrangido por este volume é de quase quatro décadas, e Faulkner exercita diversas facetas aqui.

Alguns capítulos são escritos por alguns dos personagens, recurso já utilizado em Enquanto Agonizo, e outros vêm diretamente pela voz do narrador. A gênese deste romance foi demorada, e o um prefácio do próprio Faulkner faz um alerta a possíveis incongruências.

A âncora que prende o texto à produção passada do escritor é o condado de Yoknapatawpha, cujo nome inpronunciável denuncia sua imaterialidade, mas reforça seu significado. A visão crítica sobre a situação dos negros no Mississipi, forte em O Intruso, tem pouco espaço aqui, o que denota um Faulkner de fornada mais recente. Existe a nostalgia de uma terra que havia sido desolada há pouco, com em O Urso, mas agora é apenas um eco de uma lástima: o rural é um arremedo da cultura agrária, e se mescla aos espaços pseudo-urbanos como Jefferson.

Os soldados retornam para um plano principal com Linda, que traz ainda novas tintas vermelhas ao universo fechado e interiorano. Filha do vilão que encabeça o elenco da trilogia, e também não filha, ela vai a Nova Iorque e combate na Espanha junto aos comunistas. Linda é dona do livro no miolo deste volume, e um ideal da mulher inatingível, como sua mãe também fora.

Tenacidade e persistência formam a estrutura de Mink Snopes, o minúsculo e infatigável nêmesis de duas das mais poderosas figuras de Jefferson. É pelo tempo dele que se pauta a história, que principia em um assassinato para desaguar em outro.

A leitura tem seus percalços, com suas frases e seus, muitas vezes pouco deglutíveis, fluxos de consciência. O leitor há de contorná-los, cercá-los, e então decifrá-los, se não pela compreensão direta das palavras, por seu ritmo e suas emissões sinestésicas.

Um aspecto marcante deste volume é a habilidade especial do escritor em deixar camadas das personagens a decifrar pelo leitor. Estas camadas desenham entes tridimensionais, que nos surpreendem mais de uma vez, conforme as tramas se revelam. Gavin Stevens, por exemplo, ao saber que Mink retorna à cidade, define uma data para que tudo se revele. Ao chegar o dia, ele simplesmente se convence, como em um lance místico, de que Mink não aparecerá, que está morto, em um jorro fulminante de auto-engano diante do imponderável. Logo ele se recupera, pois qualquer um sabe que Mink não pode ser parado por nada exceto pela execução de sua missão.

Um trecho da página 191, livro de Linda, narrado por Gavin Stevens:

(…)
“Nenhuma insinuação é claro,” eu disse. Mas ele não disse Obrigado quando lhe cabia dizer isso. Ele não disse nada, nada mesmo. Só sentava ali me olhando através de seus óculos, grisalho, neutro como um camaleão, aterrador como as pegadas na praia de Robinson Crusoe, muito negativo e neutro naquela frágil articulação para suportar o peso do terrível manto que representava. “O que você quer então é que eu use a minha influência -“
(…)

Mais textos sobre Faulkner:

Os invencidos;

Palmeiras Selvagens;

Luz em Agosto.

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12 respostas para William Faulkner: A Mansão

  1. crisi disse:

    Não conhecia essa história das parcas! faz muito sentido, explica não só essa passagem.
    E realmente A tradução em Faulkner é muito discutida, inclusive quanto ao sotaque sulista estadunidense.
    Ouvi dizer que as traduções de feitas em Portugal são boas, já entrei inclusive em sites de livrarias portuguesas para tentar pedir livros que sequer foram lançados no Brasil como Mosquitos – Depois de ter lido O Som e a Fúria comecei a ler as outras obras e não consigo parar mais… Estou passando por uma febre faulkneriana!

    saudações, parabéns pelo blog, não apenas pelas postagens do Faulkner, mas nas opiniões em geral. Acompanharei…

    • gilvas disse:

      me diz uma coisa: qual foi o primeiro faulkner que tu leste? ele desceu redondo, ou tiveste de trabalhar o teu paladar para o texto dele?

      • crisi disse:

        Li O Som e Fúria(!), estava em uma lista de 10 melhores livros.

        praticamente o li 2 vezes, pois voltei diversas vezes, 30, 40 pags. e no fim, li trechos inteiros para fazer sentido certos episódios. Então foi bem traumático, pois tinha tentado ler Rumo ao Farol (Virginia Woolf) e não consegui – o tal fluxo de consciência. Só sei que após isso li: Luz em agosto, Os desgarrados, Palmeiras selvagens, Absalão, absalão, Esquetes de Nova Orleans, O Intruso, O Povoado, A Cidade,e atualmente estou lendo A Mansão. Tudo em 2013.
        Realmente Faulkner é obscuro e complexo e reservo locais e horários propícios a atenção que suas obras merecem. Mas comparo ler Faulkner com alguém que quer algo a mais do que a simples história com começo meio e fim.

      • gilvas disse:

        já li virginia woolf, e não curti. acho que são raros os autores que resolvem-se bem com o fluxo de consciência.

        faulkner tem esta coisa mesmo, de escrever mais do que um romance, de extrapolar a noção do romance tradicional.

        Em 28 de janeiro de 2014 14:35, sinestesia

  2. crisi disse:

    a trilogia toda e‘ sensacional, algo que so poderia ter surgido da genialidade de Faulkner. Mas quem sao “ELES“ que o autor cita que quer ver Mink passar por tudo aquilo? todo aquele trabalho da cerca do Houston, seriam os deuses? ou mesmo Deus? Faulkner mostra em suas obras ser ateu, seria uma forma de instigar os leitores quanto a isso?
    att

    • gilvas disse:

      a posição de faulkner em relação à religião sempre me intrigou, pois ele usa muitas imagens religiosas, metáforas e parábolas do novo e do velho testamento. todavia, não me agrada, às vezes, descobrir as entranhas do artista que admiro, pois isto pode corroer meu prazer em devorar sua obra. vou ler o restante da trilogia, e de repente tenho algo mais a te dizer.

      • crisi disse:

        Absalão, Absalão p. ex (que considero um dos melhores livros!) é baseado em uma historia bíblica, e como nunca fui muito leitor da bíblia, fiquei meio perdido no começo. E ainda assim, Faulkner escreve isso na pag. 106:

        “A gente nasce e tenta sobreviver sem saber porque, apenas continua tentando. E a gente nasce em meio a uma porção de outras pessoas, juntos com elas, que também estão tentando, tendo de tentar, movendo os braços e pernas que estão presos aos fios, os mesmos fios que estão enleados a outros braços e pernas, e todos os outros tentando também, sem saber por quê.
        A única coisa que se sabe é que todos os fios estão trançados e enredados, um no caminho do outro. É como se cinco ou seis pessoas tentassem fazer um tapete no mesmo tear e cada uma quisesse tecer e bordar nele o seu modelo. E isso não pode ser importante não é?
        Porque senão Aqueles que criaram o tear teriam arranjado as coisas de uma forma um pouco melhor. Mesmo assim, deve ser importante, porque a gente continuando tentando ou tendo que continuar a tentar, e então, de repente, tudo acaba.”

        Não sou ateu, mas achei simplesmente sensacional esse trecho, e de certa forma é verdade, mas não deixa ser de uma “cutucada” Naqueles (não sei porque Faulkner usa o plural, se ele quer falar de Deus) que criaram o universo. O fato é que os personagens do autor tendem a inclinar para um destino que foi-lhes incumbidos, sem ter opção de escolha, as coisas vão sucedendo-se e não tem como parar…

      • gilvas disse:

        minha primeira opção seria que faulkner poderia estar fazendo uma alusão às parcas, as fiandeiras do destino: http://www.infoescola.com/mitologia-grega/moiras/

        todavia, ele se refere especificamente a um tear e a “cinco ou seis pessoas” que trabalham no tal tear. faulkner pode estar citando de forma enviesada, ou pode ser um efeito indesejado da interpretação antes da tradução.

        faulkner é difícil de ser traduzido, como deves saber. eu li luz em agosto duas vezes; a primeira na edição da record, e a segunda, na da cosac&naify. parece outro livro, é bizarro.

  3. Pingback: Cormac McCarthy: A Travessia « sinestesia

  4. Pingback: William-Faulkner-A-Mansao : Sysmaya

  5. marcelo de almeida disse:

    Faukner e fodaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!! Ma nao da pra mim por agora ! Estou terminando algumas coisas do nao menos foda “Graham Greene” “Loucura esse “O fator Humano, nao? me lembra muito .WATCHMEN.Estou certo? Errado? nao sei , ou apenas achei o preço atrativo R$ 5,00..

    • gilvas disse:

      graham greene é o eterno injustiçado dos sebos: é tão barato que a gente desconfia que seja ruim.

      o clima de paranóia em fator humano efetivamente remete a watchmen: boa sacada!

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