Descartes no Clube

A piscina é um espaço cartesiano por excelência, e talvez, por conceito.

Seu formato é retangular, cuja perfeição depende menos da intenção de seus projetistas do que da boa vontade dos seus executores.

Seu revestimento é de azulejos regulares, cujas cores oscilam ordenamente entre azul mais claro e azul mais escuro, celeste e marinho.

Sua água é padronizada, mantida limpa por força de filtragens mecânicas e aplicação de produtos químicos, dos quais me lembro durante o restante do dia em que fui nadar pela manhã, apesar do banho que tomo.

Suas raias são marcadas no fundo e na superfície da água, definindo claramente por onde devemos despejar nossas braçadas.

A temperatura de sua água é controlada de forma a manter-nos sentindo uma sensação de tepidez mesmo quando o exterior do prédio é açoitado por temperaturas bem inferiores.

A luz do ambiente é forte, não há como nos enganarmos sobre o caminho a tomar.

Resta a nós, padronizados em óculos, touca e roupa de banho, esta rigidamente definida por gênero, nadar, com maior ou menor competência. Pertenço ao segundo grupo, claro, mas pretendo melhorar.

Já vi propagandas de escolas de natação, e algumas evocam um papo nova era do tipo “a água é o meio natural do ser humano”, “você nadava dentro da barriga da sua mãe”, “a vida surgiu na sopa primordial, água com nutrientes”. Nenhuma delas entra em detalhes como os raios tenebrosos que assolavam a Terra quando a vida surgiu por aqui, e nem as chuvas medonhas de meteoros, sem falar que a vida provavelmente não surgiria numa sopa de cloro. Se surgisse, eu poderia fazer piada com a pele do Michael Jackson, então é melhor parar.

Poucos fatores interferem na esfera controlada da piscina. As marolas dos nadadores de maiores dimensões ou menor educação costumam atrapalhar o rendimento dos menos capacitados, ou mesmo provocam afundamentos. A névoa dos dias frios, dentro do pavilhão da piscina, pode te fazer se sentir dentro de um cenário de filme de terror de baixo orçamento ou mesmo em um show do Duran Duran, embora nem por isso você vá se atravessar a ponto de invadir outra raia.

Apesar de todas estas considerações, nadar é excelente. Exige uma coordenação extraordinária do corpo: precisamos respirar, dar braçadas, bater pernas, manter o corpo ereto, girar em torno do eixo da coluna para buscar, fora outros detalhes menores que fazem a diferença entre nadar e simplesmente se debater dentro da água.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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4 respostas para Descartes no Clube

  1. Kellen disse:

    Eu sequer sei boiar. Tentei resolver isso aos 25, 26 anos. Depois da terceira aula cheia de bóias e um caldo(!) ridículo provocado por uma marola(!!) da piscina(!!!), eu decidi que era mico demais e me assumi com um bicho terrestre. Talvez eu seja irregular demais pra me encaixar em tamanha padronização.

  2. Pingback: Cha-cha-chá « sinestesia

  3. Quando criança tomei um caldo no mar e fiquei com medo. Decidi enfrentar isso aos 29, então entrei na escola de natação. Fiz um ano e meio de aulas e peguei uma infecção que quase atingiu o rim. Parei. Ainda gosto de nadar, mas em piscina. No mar só o que eu consigo é andar em círculos. Não consigo encontrar os retângulos…

  4. MM disse:

    Água, água …nostalgia. Lembrei da minha infância e da praia de Armação da Piedade e da Praia Grande, onde meus lábios ficavam roxos tamanho o tempo que eu ficava imersa em suas águas. Mas o que eu gostava mesmo era de remar, com meu barco chamado Rolusama e também de pescar. Hummhumm tempos de caldos e brincadeiras de criança. Nada cartesiano.

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