Missô

Descobri o missoshiro através de um equívoco no pedido de um prato no restaurante Sushiyama, quando este ainda se localizava de um hotel no Canto da Lagoa. Bela vista, belo local. Imaginem qual não foi minha surpresa ao ver o garçom me servir aquela tigelinha de, uhm, sopa? Cebolinha e tofu se esgueiravam no meio do líquido em tons de marrom, e, para dissipar qualquer suspeita sobre minha óbvia jequice, pus-me a devorar a iguaria com ares de entendido. Assim, eu, que nunca fui de gostar de sopas e caldos, adquiri o costume de pedir este prato quando de minhas incursões a restaurantes japoneses.

O missoshiro é um alimento elegante e simples: para mim não existe paradoxo quando conecto estes dois adjetivos juntos, mas, ainda assim, não havia me arriscado a implementar versões caseiras do prato. Temor de deixar estragar o tofu, ou de não ter as cebolinhas? Medo de que a magia misteriosa se perdesse ao deixar o universo de um caldeirão anônimo numa cozinha de estranhos? Não, não, acredito que tenha sido apenas inércia, o tempo todo.

Ela acabou no dia em que eu passeava pelo Angeloni, fazendo meu rancho com a Maricota. Deparei-me com uma embalagem semelhante a de margarina, e pensei que o universo das jantas no avançado da noite poderia muito bem ir além das sopas Vono, apesar do toque especial que elas ganham em minha cozinha, e de que falarei mais adiante. Eu já havia feito alguns ensaios com um missoshiro de saquinho da mesma marca no passado recente, mas o teste de paladar rejeitou-o categoricamente.

Chegando em casa com a massa, com o tofu, e carregando também um caldo de peixe, pus-me a ler a pequena receita. Trivial. Improvisei os verdinhos com salsa da minha horta, e, caramba, funciona muito bem. A receita do livrinho que vem com a massa de missô exagera um pouco no tofu: colocando dois terços já está bem servido. Fora isso, irretocável.

Atualmente tenho cebolinha crescendo na minha pequena horta, e logo terei capacidade para executar uma receita de missoshiro à risca. Tentei com cebolinhas congeladas, mas não funcionou bem, e cebolinhas murchas nem valem a aposta.

Num dia como hoje, em que cheguei em casa com uma dor de cabeça se avizinhando após uma prova de improvável êxito, o missoshiro é perfeito: o sal do caldo estabiliza o sal no organismo, ajustando as reações iônicas, e a proteína do tofu, mais a do missô, reestruturam as coisas dentro do meu corpo. A cabeça clareia, relaxa ao observar as belas evoluções dos fragmentos de soja em suspensão em meio ao caldo. Brincar com comida é quase um exercício zen quando se fala em missoshiro, mas só funciona enquanto ele está quente demais para ser sorvido.

Sorver o caldo é diversão pura pela emissão de barulhos extremamente pouco educados. Da mesma forma, é lúdico pescar os cubos de tofu, sempre com o desafio de levantar o menor número possível de partículas, que, nesta altura do campeonato, suspendem-se em formas belas, como se fossem galáxias flutuam em meio ao um vácuo de soja e sal.

***

Há dias em que a preguiça impera, e mesmo o esforço de fazer uma singela tigela de missoshiro parece um tanto demais. Neste caso, menos pretensão e maior efetividade se alcança pelo preparo de uma xícara de sopa Vono. O preparo original enjoa depois de três vezes, mas incluir um ingrediente extra pode fazer o charme retornar a este mundano preparado dos tempos modernos: acrescente um pedaço mediano de gorgonzola, e terás algo parecido com prazer ao sorver a sua xícara de Vono. Não funciona com qualquer sabor, claro, e você também pode argumentar que qualquer coisa salgada fica ótima com gorgonzola; eu provavelmente não direi que estás errado.

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Apesar das marcas citadas no texto acima, este não tem o caráter de propaganda intencional dos produtos em questão. Eles figuram apenas como referência para os aventureiros que quiserem encarar suas próprias versões de missoshiro.

Sobre gilvas

Pedante e decadente, ao seu dispor.
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7 respostas para Missô

  1. Ana Corina disse:

    Acho que deverias conhecer este blog: http://www.soniahirsch.com e os livros dela tbém, em especial o “O manual do herói” e o “Deixa sair”.

    😉

  2. Humberto disse:

    amo, missô!

    e aqueles de saquinho sao decepcionantes, né?

  3. turnes disse:

    desnaturado! desnaturado! desnaturado!

  4. gilvas disse:

    vou à cata das sugestões em minha viagem a sampa em setembro.

  5. Ed disse:

    Eu sou descendente de japonês e apesar de não ser muito fã do missoshiro (caldo de missô ou sopa de missô numa tradução livre) minha mãe sempre faz.
    Umas sugestões para você que gosta de incrementar é colocar “kombu”, “aguê”, ou mesmo um ovo cru e misturar ao caldo.

  6. Christian disse:

    Dizem que existe uma arte de leitura do futuro baseada nas formas desenhadas pelo misso no caldo em ebulição, no chawan. É uma arte semelhante à da leitura da borra (“b”, não “p”) do café, arte famosa entre os árabes, se não me engano.

    Amiga minha tentou explicar isso, mas não entendi bem. Mesmo assim, quase inconscientemente, desenvolvi o hábito (bobo, claro) de tentar ler essas formas, como quem olha, embasbacado, manchas de Rorschach. Em vão.

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